quarta-feira, 25 de maio de 2016

ALÉM DAQUELAS ÁRVORES (Romance de Geraldo J. Costa Jr)

“Fez o melhor que podia – não foi bom o bastante” – A. Kostler


1.
O sol ia se deitando vagarosamente, em meio às nuvens, naquele início de manhã, depois que chovera forte e ininterruptamente desde a noite anterior. Era o primeiro sepultamento do dia no cemitério de São João Batista daquela localidade. Outros dois estavam programados para antes, segundo o quadro de avisos da recepção, mas esse se adiantara aos demais, devido ao estado delicado do corpo, que não permitia se esperasse muito. 
Reprodução
O cortejo não reunia muita gente. Apenas familiares e amigos de longa data da falecida, ex-companheiros de trabalho e colegas dos tempos de escola.
O caixão foi colocado na única gaveta ainda não ocupada no jazigo da família. Aos poucos, as pessoas que prestavam suas últimas homenagens à falecida, começaram a se retirar. Algumas em silêncio, cabisbaixas; outras, conversando amenidades, esquecidas talvez que haviam acabado de presenciar um sepultamento.
Habituados à situação os coveiros, dois homens de meia-idade, vestindo o uniforme azul com detalhes em verde, de tecido rude e já bastante puído, destinado aos trabalhadores braçais da prefeitura, trabalhavam compenetrados e absolutamente indiferentes aos acontecimentos à sua volta.
Quando o último tijolo que fechava a gaveta do jazigo foi assentado, Lúcia percebeu que havia se rompido o derradeiro laço de afetividade que ainda mantinha com a sua família. Acompanhada do marido, retirou-se, tomando o rumo da avenida central do cemitério onde havia acabado de sepultar sua mãe.
Junto ao marido buscava apoio para enfrentar com dignidade o terrível momento da separação. Não sentiria a mesma dor se ao invés de enterrar a mãe, houvesse enterrado o pai. Tinha dele muitas mágoas com as quais fora obrigada conviver durante aqueles anos todos em respeito à mãe e por temer que qualquer rompimento traumático e definitivo com o pai, abalaria ainda mais a o estado de saúde precário da mãe. Agora finalmente estava livre para dar as costas ao que restara da família à qual pertencia e seguir adiante. Talvez para bem longe. Chegara a pensar inclusive na possibilidade de se mudar de cidade mais uma vez, para um lugar onde não corresse o risco de esbarrar de repente com seu pai ou então ouvir a voz dele, mesmo que ao longe.
Lúcia acompanhava, ao acaso, o vôo desorientado de um pássaro procurando abrigo no galho de uma árvore, quando, súbito, olhou para trás, e viu o seu irmão mais novo, ainda junto ao túmulo da mãe, observando o trabalho dos coveiros.
Quando Márcio nasceu, Lúcia já tinha onze anos. Ela procurava nisto encontrar razões para a distância física e sentimental que sempre houvera entre eles. De repente, enquanto desviava os olhos de Márcio para procurar o pássaro errante, percebeu que, durante aqueles anos todos, nunca se preocupara com o irmão caçula como deveria. Na verdade, tinha uma visão bastante crítica em relação a ele, porque lhe causava decepção o modo inconseqüente como Márcio se comportava perante a vida. Naqueles últimos meses, quando se agravara o estado de saúde da mãe de ambos, e sua presença se fizera mais constante na casa dos pais, com os quais, Márcio vivia, Lúcia percebera que o irmão tornara-se de fato, como ela temia, um jovem bastante revoltado. Márcio demonstrava indiferença para com a vida, e parecia fazê-lo sem nenhum arrependimento. Durante muito tempo Lúcia achava que o comportamento estranho e arredio do irmão, era conseqüência da incapacidade que ele demonstrara desde pequeno para enfrentar os problemas, preferindo transferir aos mais próximos a responsabilidade e a solução dos mesmos. Mas, naquele momento, enquanto o observava ao longe diante do túmulo da mãe, pensou que bem poderia ao menos tentar entendê-lo e, talvez, respeitá-lo em suas decisões. Afinal, era seu irmão.
Parou de caminhar, de repente, e, pedindo licença ao marido, foi ao encontro de Márcio, e, já bem próxima, deparou-se com o olhar compenetrado e ao mesmo tempo perdido que ele, ao acaso, lhe dirigira repentinamente.
Márcio, entretanto, parecia divagar em pensamentos longínquos. Aos olhos de Lúcia, tornara-se como um espectro. Márcio continuou olhando-a, mas agora, com indiferença. E ela deteve-se em observá-lo atentamente. Ele parecia não haver tomado banho naqueles últimos dias, sequer fizera a barba, e, naquela manhã, nem penteara o cabelo. A sua aparência desleixada sempre a incomodara muito.
Porém, naquele momento, ela queria apenas lembrá-lo de que poderia lhe substituir a mãe. E tentara fazê-lo com um olhar, porque não teria coragem de tentar com palavras. Embora este fosse o repentino e inexplicável desejo que lhe acometia.
“Márcio...? Você não vem?”. – disse ela.
Como se voltasse à realidade, Márcio pousou o olhar sobre a irmã.
Tiago, o marido de Lúcia, aproximava-se.
Márcio respondeu indiferente:
“Por que deveria?”.
Respostas assim deixavam-na desconcertada. Nunca soubera como agir em tais circunstâncias.
Cônscio da situação desagradável, porém, comum naquela família, Tiago tratou de tirar a esposa dali de perto. E, embora contrariada, Lúcia acompanhou o marido.
Deixavam o cemitério, caminhando em direção ao carro, quando Lúcia olhou para trás e encontrou novamente o irmão, ainda no mesmo lugar e do mesmo modo. E o que não era comum experimentou um sentimento de afeição por ele. Algo que, durante o trajeto para casa, quis acreditar fosse apenas piedade.

 2.
Já fazia dois meses que a mãe falecera, depois de tanto sofrer por uma doença jamais diagnosticada. Márcio, agora, morava sozinho, na casa que para ele se tornara enorme. O pai, durante excursão de férias de um grupo da terceira idade do qual participava, havia conhecido uma senhora no litoral norte do estado com a qual se simpatizara. Naquele dia, portanto, completava um mês que Pedro Scarpini para lá se mudara levando suas malas, não sem avisar que voltaria “caso as coisas não dessem certo por lá”. Todos os dias, antes de dormir, Márcio deixava o orgulho de lado e implorava a Deus, de joelhos, que as coisas para o seu pai continuassem dando certo.
Voltava do banheiro enxugando as mãos na camisa quando o telefone da sala tocou. Era a irmã perguntando sobre ele.
“Sim, está tudo bem”. – ele respondeu.
“Quer que eu mande alguém pra limpar a casa?”.
“Não”.
“Alguma coisa pra comer?”.
“Não. Não precisa. Não se preocupe”.
“Do que você precisa então?”.
“Que me deixe em paz”.
Tiago, o marido de Lúcia, que acompanhava à distância a conversa, percebeu quando a esposa fechou os olhos e prendeu a respiração. Viu, contrariado, quando ela desligou o telefone, e, chorando, cruzou as pernas e escondeu o rosto com as mãos.
“Como você pode gostar de alguém que não gosta nem de si mesmo?” – perguntou.
“Acontece, Tiago que ele é meu irmão!”
“Você não pensava assim, antes de sua mãe falecer”.
“Mas agora penso. Não sei exatamente o motivo. Mas isso é de menos importância. Tudo que sei, é que meu irmão precisa de mim!”
“Pois está enganada, Lúcia. Porque em verdade ele jamais precisou de ninguém. E sempre fez questão de deixar isso bem claro para todos nós que somos sua família”.
“Tiago, eu tenho medo que ele faça alguma besteira”.
“Não fará. Se tivesse de fazer já o teria feito”.
“Nunca se sabe. Essas decisões podem ser repentinas. Podem surgir do nada. Assim, de repente...”.
Olharam-se, com ternura, como de hábito, e, depois de algum tempo, se abraçaram. Tiago sabia como acalmá-la, Conhecia os argumentos e as justificativas capazes de convencê-la. Contudo, naquela noite, vira essa crença abalada. Nenhum carinho, palavra amiga, nada parecia afastar Márcio do pensamento de Lúcia. Nada. Nem mesmo o abraço forte de Tiago, no qual, tanta segurança e conforto ela sempre encontrara. Por fim, ele desistiu de persuadi-la. Levantou-se e foi até a cozinha beber água. Quando retornou para o quarto, encontrou a esposa diante do espelho já vestida e ajeitando os cabelos.
“Aonde você vai uma hora dessas?”.
“Vou sair”.
“Sim. É o que parece. Mas onde exatamente?”
“Visitar o meu irmão. Preciso saber como ele está”.
“São três horas da manhã, Lúcia!”.
“Eu sei”.
Olhou para Tiago como se lhe pedisse desculpas, implorando para que tentasse ao menos entender o que estava fazendo, já que não podia mesmo aceitar.
“Meu amor sossegue! Afinal, eu não estou traindo você. Estou indo visitar o meu irmão, que sinto precisar de mim”.
“Pois bem Lúcia. Você está traindo a si mesma. Traindo os seus valores e seus princípios. E espero que reconheça logo e de vez por toda a besteira que isso significa”.
Ela fez como se aquela sentença freasse o seu ânimo. Parou diante do marido e ficou a olhá-lo, surpresa porque não esperava tamanha sinceridade e convicção da parte dele.
“Talvez seja isso mesmo – ela respondeu – Mas, por enquanto, farei o que manda o meu coração”.
“Lúcia, não consigo entender o que se passa com você ultimamente. Nunca deu a mínima importância para o seu irmão. E ele, ao que parece, também não dá nenhuma importância para você. Aliás, nunca deu. De maneira que não compreendo e, pra ser sincero, me custa aceitar, esse repentino apego, essa demasiada preocupação que, de repente, você passou a demonstrar por ele”.
Os filhos dormiam tranqüilos no quarto ao lado. Tiago foi até a sala e ligou a TV. Escutou, com certo desconforto, quando Lúcia colocou o carro em movimento.
Ao retornar para casa, algumas horas depois, Lúcia encontrou Tiago e os filhos dormindo. Na ponta dos pés, foi até o banheiro e lá ficou, deixando que a água quente do chuveiro caísse sobre o seu corpo, durante um bom tempo.
Deitou-se, mas não dormiu. Após refletir bastante na situação de Márcio, resolveu deixar de lado esta preocupação e tentou acordar o marido porque queria sentir os seus braços fortes a protegê-la. Porém, Tiago não cedeu às suas investidas.
Logo amanheceu. Lúcia levantou-se, tomou outro banho e um comprimido para dor de cabeça que encontrara no armário do banheiro, entre outros. Depois, beijou o marido, ainda na cama, e foi para a cozinha preparar o café. Estava distraída, colocando o pó dentro do coador descartável, quando sentiu o abraço forte e apertado de Tiago despertando-lhe o desejo reprimido desde a noite anterior. Com carinho e determinação, ele a colocou sentada na pia. E, naquela manhã, o café demorou a sair.
Minutos depois, juntos, à mesa, olhavam-se compenetrados, enquanto esperavam pelos filhos, para, como de costume, tomar todos reunidos o café da manhã.
Tiago tinha adoração por Lúcia. Não conseguia imaginar sua vida sem ela. Era um sentimento de paixão e dependência física e espiritual, que, por vezes, chegava a ser irritante. Até conhecê-la, nunca lhe passara pela cabeça casar-se, ter filhos e formar família. Achava mesmo que iria levar vidinha solitária e rotineira resolvendo problemas todos os dias no escritório de contabilidade do qual era sócio.
Por isso, algumas vezes, lhe custava acreditar que Lúcia havia surgido em sua vida para lhe trazer a felicidade, a qual, ele tinha esperança de encontrá-la, mas nenhuma certeza. Era nisso que estava pensando, quando, disse, de repente:
“Fazer amor com você Lúcia, é como colher as rosas na primeira manhã de primavera”.
“Vai sentir o perfume dos meus cabelos durante o dia, querido?”.
“Não apenas dos teus cabelos. Mas de todo o teu corpo”.
“Vai me amar em pensamento?”.
“Como um escritor que imagina uma cena antes de escrevê-la”.
“Pra você, querido, o que sou: Prosa? Ou poesia?”.
“Eu poderia escrever uma dezena de prosas e outras tantas poesias sobre você, meu amor, não seria o bastante para demonstrar o que sinto”. – ele parou, de repente, e permaneceu algum tempo olhando na direção da janela da cozinha. Mas quando voltou a olhá-la, disse ainda – Meu pai costumava dizer que não devemos demonstrar a uma mulher todo o amor que sentimos por ela. Eu lamento, mas irei desapontá-lo agora... Porque você, meu amor... - e a emoção o impediu de continuar; às lágrimas não pôde resistir – Lúcia, eu... Quero que saiba...
Ela, repentinamente, desviou o olhar dele, como quem se nega a receber resignada, a sua sentença de morte. Mesmo assim ele disse:
 “Amo você, Lúcia... Mais do que tudo. Mais do que a mim mesmo. E sob qualquer circunstância. Portanto não suportaria, e jamais admitiria a ideia de perdê-la”.
Ela então olhou para ele, como se não pudesse aceitar tamanha devoção.
“Estarei te amando sempre – ele continuou – Apesar do tempo, das dificuldades... E do que possa acontecer”.
Tiago baixou os olhos. Porque agora ele é que se via envolvido por forte emoção.
“Estarei te amando. Ainda que distante do teu olhar... E do alcance de tuas mãos. Ainda que a tua presença em minha vida seja tão somente uma lembrança que não se apaga”.
“Não! – disse ela, com ternura, tocando-lhe o rosto com carinho – Não, querido. Não se sujeite a tanto. Você não merece isso. Se um dia eu faltar em sua vida... continue. Não pare por minha causa. Continue buscando a felicidade que você merece. Você haverá de encontrá-la”.
Tinham por hábito se beijarem diante dos filhos, mesmo em situações muito especiais. Lúcia compreendeu que aquela não era uma delas.

 3.
A tarefa de levar os filhos para a escola era responsabilidade de Lúcia, algo que ela fazia com satisfação, porque os filhos demonstravam prazer em estudar, e, porque a escola ficava a apenas alguns quarteirões da agência bancária onde trabalhava, na área central da cidade.
Naquela manhã, à porta da escola, ela despediu-se dos filhos com beijos e abraços carinhosos.
Contudo, antes de ir ao trabalho, resolveu visitar o irmão. Chamou, bateu à porta, insistiu, nada. Se Márcio estava lá dentro da casa, não queria atendê-la. No relógio do painel do carro viu que já eram quase nove horas, e entrava em serviço às nove e meia. Não por acaso, havia, sob protestos, derrubado os filhos da cama mais cedo. Queria a todo custo ver o irmão antes de ir para o trabalho. Mas a expectativa que se revelara frustrante, agora, também lhe causava irritação. Resolveu deixar momentaneamente de lado as preocupações com o irmão caçula e cuidar da própria vida, cuja tarefa se tornava a cada dia mais difícil.
Chegando à agência bancária, onde trabalhava, logo encontrou uma vaga no estacionamento. Olhando-se no retrovisor, ajeitou os cabelos, retocou a maquiagem, apanhou a bolsa e desceu. Não deu dois passos alguém surgiu à sua frente.
“Márcio! – disse, aliviada e surpresa ao mesmo tempo – Por onde andou? Estive em sua casa e você... Você está bem?”.
“Melhor agora”.  – contudo, sua aparência não era nada boa.
Tentando não reparar nisso, Lúcia demonstrou satisfação:
“Que bom que esteja bem!”.
Fez menção de beijá-lo no rosto, mas ele a evitou, afastando-se, sob o olhar, confuso dela – Vim aqui – ele disse, bastante sério – Porque lhe devo desculpas. Por aquele dia no cemitério. E por tudo mais que tenho lhe causado esses anos todos.
“Ora, querido! – disse ela, carinhosamente – Não se preocupe. Eu compreendo você. Sim eu compreendo. E você, por favor, Márcio, jamais duvide disto”.
Ele ameaçou um sorriso que logo se desfez. Abaixou a cabeça, voltou a olhá-la, apenas por um instante, como se lhe custasse acreditar no que ouvira. De repente, sentiu o coração transbordar de felicidade, um sentimento do qual já não se lembrava. Mas aquilo não era o bastante para ele atravessar a fronteira que o separava da indiferença que tinha para com a irmã e do afeto que um dia, na ingenuidade dos seus 12 anos, acreditara pudesse vir a ter.
Márcio afastou-se da irmã, sem se despedir.
Enquanto pôde, Lúcia permaneceu olhando para ele. Vinte e dois anos de idade, boa estatura, magro, vestindo jeans; sujo e desbotado; camiseta preta lavada com água sanitária e já bastante descorada; e nos pés, um tênis igualmente sujo, velho e rasgado. Pensou quantos meses fazia que o irmão não cortava o cabelo. Ela cortava os seus a cada vinte dias. Mas aquele moço, cuja aparência sempre lhe causara repugnância, era o seu irmão. Tinha por hábito recriminá-lo pelas escolhas que ele fizera em sua passagem da adolescência para a juventude. As piores namoradas, os piores amigos, as piores decisões. Não se interessara pelos estudos. Não havia concluído sequer o segundo grau. Prestava concursos para cargos públicos apenas para acalmar os nervos do pai e acalentar as ilusões da irmã. Um rapaz fora dos padrões, os quais, ele parecia fazer questão de ignorá-los. Um sujeito infeliz e revoltado, por ter perdido muito cedo a esperança. Contudo, olhando para Márcio, já bem distante, e refletindo um pouco sobre si mesma, Lúcia percebia com tristeza a realidade: Já não havia diferença entre eles. Porque ela, apesar de tudo o que possuía, os bens materiais, a vida em família, o bom emprego, também não era feliz.

4.
Márcio girou o tambor, que havia municiado com um único projétil. Sentiu uma pontada na cabeça, pouco acima da orelha, antes mesmo de encostar o cano do revólver naquela mesma posição, o que não chegou a fazê-lo, porque, de repente, pensou na irmã. Houve tempo em que o fato de pensar nela seria motivo bastante para disparar aquele maldito revólver. Mas agora era diferente. E ele não sabia o motivo. Embora estivesse disposto a descobrir.
A noite ia caindo e ventava forte. Finalmente havia tomado banho. Encontrara numa das gavetas da cômoda uma camisa pólo, preta, da qual gostava muito, mas imaginava não mais possuí-la. No armário, amontoado entre outras roupas, que não havia passado por desleixo mesmo, encontrou uma calça jeans que, embora desbotada, diferentemente das outras, mantinha-se longe das traças. Na estante da sala pegou os salmos para ler. Era de opinião que o rei Davi, aquele da Bíblia e dos salmos, fora o maior dos poetas, e nada mais. E Márcio gostava de poesias, aquelas que descrevem os tormentos da alma. Não podia compreender por que o homem não tem o direito de decidir o seu próprio destino. Tinha a posse da vida, mas não tinha direito sobre ela. Embora lhe pertencesse, não poderia interrompê-la quando quisesse, sem que isso lhe conduzisse às chamas do inferno.
Naquela manhã, ainda na cama, embora desperto, surpreendera-se absolutamente incapaz de um movimento. Demorara um pouco até levantar-se, porque olhara em redor e vira-se novamente preso à sua medíocre rotina. E a temia.
Perdera tempo lendo jornais e assistindo ao primeiro noticiário da tevê, no aparelho de 14 polegadas que ficava em cima da pia, ao lado do filtro de água.
O que estaria fazendo Lúcia, naquele instante – pensou, de repente – Tomando banho? Vestindo-se? O quê? Preparando o café da manhã para a sua família? Estaria pensando nele? Sentindo ao mesmo tempo raiva e piedade dele? Provavelmente não.
Riu, quando percebeu que Lúcia vivia situação semelhante a dele. Compreendera isso com naturalidade, na manhã anterior, quando fixara os olhos nela, a ponto de fazê-la sentir-se incomodada.
Junto à família, no seu ambiente de trabalho, Lúcia demonstrava ares de felicidade e satisfação, porque tinha bom emprego, casa grande e bonita, filhos educados e saudáveis, marido exemplar que a amava perdidamente, embora, muitas vezes, não soubesse demonstrar isso, não do modo como ela gostaria. Mas, intimamente, Lucia lamentava-se. Sim – acreditava Márcio – Lúcia desejava com desespero expurgar a raiva que sentia de si mesma. Pelas escolhas que fizera. Não tivera a mesma coragem do irmão para admitir a sua realidade. Lúcia se recusara a admitir o que era: uma artista.
Porque isso lhe exigiria entregar-se a um sacrifício para o qual não estava preparada.
Talvez – pensou Márcio – talvez ela ainda tenha guardado os seus escritos, escondidos num caderno espiral, num canto qualquer de sua casa. Talvez, se ousasse escrever novamente, suas palavras, hoje, seriam impregnadas de dor e inconformismo, bem diferente das doces palavras de esperança com as quais, em verso e prosa, preenchera as intermináveis folhas daqueles cadernos, enquanto jovenzinha.
Diferentemente do resto da família, Márcio sempre tivera interesse pelos escritos da irmã. Passava horas a vê-la escrever. E se angustiava junto dela quando a via amassar uma folha, rasgar outra ou quebrar a ponta do lápis, de tanta força que fazia para escrever, como se as palavras pudessem sair de dentro daquele lápis diretamente para o papel.
Lúcia não se importava que Márcio lesse os manuscritos que produzia, porque tinha plena convicção de que ele não entenderia nada mesmo. Contudo, na sua ingenuidade de um menino de 09, 10 anos, ele acreditava compreender sim as linhas mal traçadas, às vezes rabiscadas, quase ilegíveis, que saíam da mente de sua irmã.
Pensara nisso tudo, enquanto olhava para uma tela em branco, esquecida sobre o cavalete deixado perto da janela de seu quarto. Pegou o lápis e rabiscou alguma coisa na tela, e sentiu-se aliviado por não vê-la mais em branco. Continuou rabiscando. Aos poucos, o que eram apenas rabiscos, tornou-se um esboço. O mar agitado, ondas gigantescas se quebrando nas pedras, cavalos em disparada na praia. E, ao fundo, o cair da noite; o brilho da lua refletindo nas águas do mar. Quando deu por si, percebeu as mãos sujas de tinta e os pincéis espalhados pelo chão. Concluído, sem que ele soubesse como, um óleo sobre tela retratando uma paisagem da natureza.
O trabalho finalizado lhe proporcionava um pouco de paz. Algo momentâneo, rápido como relâmpago, como piscar de olhos. De repente, não estava mais diante da tela que produzira, mas diante de todos os medos e incertezas que tanto lhe atormentavam. Se guardasse os quadros que pintara desde os 17 anos, não haveria espaço nem para si dentro daquele quarto. Telas amontoadas, umas sobre as outras seria o cenário do recinto. Por isso dava fim nos trabalhos, rasgando-os com um canivete ou queimando-os no quintal da casa onde morava. Raras vezes presenteava alguém com as telas que produzia. Guardar um de seus trabalhos era coisa que até então, jamais fizera. Mas aquele, do mar agitado e dos cavalos em disparada na praia... Aquele sim guardaria. Ao menos estava resolvido a fazê-lo. E sabia o motivo.

 5.
Aquelas imagens não lhe saíam da mente. Pessoas que não conhecia. Pessoas se amando, chorando e rindo. Em praças, ruas, apartamentos; bares e boates, cinemas; motéis. Sob a luz do sol ou escondidas sob o manto da noite. Eram capazes de lhe perturbar, de fazê-lo desacreditar na vida e em si mesmo.
Para Márcio, não havia relação entre amor e sexo. Aos seus olhos e ao seu coração, ao seu modo de entender a vida, amor era algo sublime, transcendente, portanto, incompreensível. Coisa de poeta com tendências suicidas. Sexo era apenas desejo de satisfação momentânea do instinto primário do homem; nada mais.
Márcio tinha 14 anos, quando vira a irmã, beijando Tiago, o então namorado e futuro marido. E não se esquecia daquela cena. Submisso à lembrança que diuturnamente o incomodava, mal se dava conta de tê-la visto beijar outros rapazes, também naqueles dias, com maior desejo e satisfação.
Entretanto, passado alguns anos, Márcio sabia que aquela não era mais a sua irmã. Não. A Lúcia, de verdade, havia morrido num instante qualquer aos 23 anos, e agora estava apodrecendo dentro daquele corpo de mulher, ainda bonita e atraente, motivo de inveja para rivais não declaradas e de cobiça para homens mal resolvidos. Ninguém sabia disso. Márcio sabia. E Lúcia desconfiava que ele soubesse.
Nunca se trataram como irmãos.  Nunca se consideraram como tal. Era um sentimento de indiferença declarado, de parte a parte. Não apenas por causa da idade que os separava, mas porque, na concepção de Lúcia, Márcio deveria ter seguido os seus passos. Mas ele não se submetera. Tivera a coragem que a ela faltara. Pensara apenas em si e nos seus interesses, nos seus objetivos jamais alcançáveis, porém, verdadeiros. Amara a si mesmo mais do que qualquer outro, ou qualquer outra coisa. Não havia se corrompido. E Lúcia o detestava por isso. Márcio era o avesso do avesso. Inconseqüente, irresponsável, indiferente a tudo e a todos. Mas essas características as quais Lúcia sempre considerara como graves e irreparáveis defeitos de formação de caráter eram na verdade uma eloqüente e apaixonada declaração de amor à vida por parte do irmão. Estava convencida. E o invejava por isso.

 6.
Seis horas da manhã. Márcio chegava à praça central da cidade. Trazia uma sacola de plástico, dessas de supermercado. Próximo à banca de jornal encontrou um assento desocupado. Não seria difícil encontrar um até que os camelôs montassem suas barracas e as agências bancárias abrissem as portas
A praça ocupava duas quadras da área central da cidade. No entorno, o que não era agência bancária, era estacionamento. Outrora, havia casarões, cujos proprietários, barões do café e alguns industriais, ostentaram opulência e hipocrisia em meio à miséria daquela cidade durante muito tempo. Depois, arruinados em seus negócios, se viram privados do luxo ao qual estavam habituados e de suas mansões.
Enquanto tirava de dentro da sacola os seus apetrechos, Márcio respondeu ao cumprimento de um ex-companheiro dos tempos de escola, que, além de cumprimentá-lo com entusiasmo lhe perguntara também, se Márcio lá estava à espera da abertura da banca de jornal. Mal sabia que Márcio não tinha dinheiro no bolso, sequer para o cafezinho.
O orvalho da noite ainda estava nas folhagens espalhadas pelos canteiros daquele imenso jardim que agora recebiam o aconchego e o calor dos primeiros raios de sol da manhã.
Uma senhora velhinha, que Márcio conhecia de longa data, aproximou-se lhe pedindo uns trocados. Márcio, como sempre, mal lhe respondera, porque achava inoportuno aquele maldito hábito.
Rio Claro, de fato, era feito uma cidade dormitório. Seis horas da manhã de sábado, e a banca de jornal estava fechada, a padaria também, assim como o botequim do chinês. Entretanto, Márcio já desenhava. Era desse modo que ganhava o parco dinheirinho, suficiente para almoçar, dia sim dia não; pra tomar um cafezinho, dia sim dia não; porque o hábito de jantar, havia perdido há bastante tempo.
Estava habituado à solidão porque morava sozinho e com algum conforto numa casa que se tornara imensa desde a morte da mãe e o sumiço do pai. Uma casa jamais concluída, as paredes da área apenas chapiscadas, o que causava à mesma desagradável aparência de pobreza e desleixo, apesar das bonitas samambaias, espalhadas pelas paredes. O pai nunca tivera interesse em terminar a casa. Havia reparos que se faziam necessários. Pisos quebrados na cozinha, azulejos caindo no banheiro, torneiras enguiçadas, trincas nas paredes dos quartos, de modo que estes problemas jamais solucionados haviam se incorporado à aparência definitiva do imóvel, não causando mais nenhum incomodo àqueles que ali viviam.
Pensava nisso tudo, ao lembrar-se que, enquanto adolescente, tinha por hábito receber em casa, aquele amigo com o qual conversara instantes atrás, para juntos, fazerem as tarefas da escola.
Talvez aquele amigo, daria boa risada, se acaso Márcio lhe contasse as dificuldades financeiras pelas quais passava. Estava acostumado a todas elas, de modo que não lhe representavam nenhum desconforto. Desde pequeno, com a doença da mãe, aprendera a cuidar de si mesmo. Lavava e passava suas roupas e preparava comida. Ultimamente, porém, dedicava-se à essas atividades apenas quando se sentia disposto.
De repente, achara que varrendo a casa todos os dias e seria o bastante para mantê-la limpa. E vivia dessa maneira, procurando manter-se distante de seus familiares.  Jamais pediria ajuda nem dinheiro emprestado para Lúcia, porque isto, em hipótese alguma o orgulho lhe permitiria. Portanto, vivia de desenhar os retratos das pessoas que passavam por aquele jardim e se interessavam pelo seu trabalho. Cobrava dez reais por cada desenho; às vezes, porém, cobrava apenas cinco, quando percebia sinceridade da parte da pessoa interessada. Era uma figura conhecida pelos freqüentadores daquela praça, também pelos taxistas, pelos camelôs e pelos hippies que, feito ele, ganhavam a vida naquele local.
Na falta de algum interessado no seu trabalho, Márcio desenhava para si mesmo, para o seu prazer. Estava fazendo exatamente isso, quando alguém, aproximou-se dele, pedindo-lhe a atenção.
Mas ele sequer respondeu, e continuou a desenhar ignorando a presença da própria irmã.
Quando desenhava, simplesmente esquecia-se do mundo à sua volta.
Imbuída das melhores intenções, Lúcia sujeitou-se ao desprezo de Márcio. Atitude que o marido, à distância, não compartilhava.
Só depois de algum tempo, com o lápis no canto da boca, a testa franzida, Márcio finalmente olhou para a irmã.  Estendeu-lhe a mão, e, com um sorriso cínico, entregou-lhe a folha na qual trabalhava.
Quando viu a si mesma, naquele desenho sombreado, feito a lápis; quando viu a si mesma, chorando, também, naquele desenho, Lúcia o amassou entre as mãos, com raiva, e o atirou para longe de si.
“Está vendo? – disse Márcio – Como não sou o único que não gosta de você?”.
Num instante, transformara em palavras o cinismo do seu olhar.
Palavras que atingiram cheio o coração desprotegido de Lúcia. Chorando, ela se afastou.
Tiago permaneceu à distância, seguindo com os olhos os passos da esposa, caminhando agora pelo calçadão da Praça XV de Novembro, em meio às pessoas, já em maior número, que por ali circulavam. A velha senhora que continuava por perto se colocou – com a mão estendida – à frente de Lúcia, que lhe dirigiu olhar carinhoso, mas, feito o irmão, preferiu ignorá-la.
Lúcia caminhava hesitante e cabisbaixa; a visão embaçada pelas lágrimas. Inconformada ante a atitude do irmão. Distraída, não se dava conta das pessoas passando ao seu lado; algumas lhe dizendo bom dia. Também não ouvia o canto dos pássaros reverenciando o sol que, ainda sonolento, atravessava as nuvens.
Tendo se aproximado do marido, parou diante dele, e quando seus olhos o encontraram, perguntaram-lhe sem obter resposta, o porquê daquilo tudo.

 7.
Sentado na poltrona da sala, o seu refúgio preferido, Márcio reproduzia mentalmente, algumas vezes, num tom quase inaudível para si próprio, os diálogos dos atores, frágeis pedaços de panos, bafejados pelo sopro da vida que mãos habilidosas transformavam em sonhos.
O teatro de bonecos, sempre exercera sobre ele grande fascínio. Márcio já havia assistido àquela peça inúmeras vezes. “Romeu e Julieta” lhe simbolizavam a eterna angústia diante do amor impossível; quando a esperança se transforma em nada perante a dor da perda irreparável.
Mas não era na sala ou na poltrona confortável, que Márcio se sentia. Era no meio do nada. Um lugar incerto e desconhecido, para onde se refugiam as almas atormentadas. Um lugar onde o céu é cinza, as árvores assustadoras, tudo é disforme e a respiração difícil. Às vezes muito alto, às vezes, terrivelmente baixo, sempre úmido.  De repente, viu-se tentado a se precipitar naquela dimensão escura, saturada de ausência, onde se acredita planar indefinidamente, sentido o perfume de rosas, ouvindo o farfalhar das árvores, o ruído dos cometas, a saudação dos deuses, sentados em poderosas nuvens, e rindo, com tamanha falta de lucidez de quem acredita encontrar liberdade na perdição.
A pessoa que agora sentava na poltrona ao lado, era a mesma que ocupava o seu pensamento, quase todo tempo, acometendo-lhe desconforto, sugando-lhe as energias.
Olhou para ela, e, como sempre fazia, com indiferença. E Lúcia, por um momento, acreditou encontrar ódio no olhar do irmão, finalmente voltado para si.
Nada disseram. E um alívio ele experimentou quando percebeu o interesse da irmã pelo espetáculo que ele proporcionava. Mas não demorou muito, a mão dela procurou a dele, então descansando sobre o braço da poltrona.
Seu primeiro impulso foi tirar o mais rápido possível, a mão dela de sobre a sua e lançar-lhe mais um daqueles olhares desconcertantes. Mas não foi o que fez. Porque não foi capaz de fazê-lo. Deixou que a mão da irmã ficasse sobre a sua, ainda que, em nenhum momento, correspondesse ao olhar que ela lhe dirigia.
Lúcia se retirou antes do término do espetáculo, aos primeiros acordes do Adaghietto da 5ª sinfonia de Mahler, que antecedeu a cena em que Julieta acusa a morte de Romeu.

De longe, Márcio acompanhou a irmã com os olhos. E, pela primeira vez, percebeu com desgosto que não repudiara a presença dela.